RESTAURANTE JOÃO DO GRÃO

 

 

CENTO E MUITOS ANOS A COZINHAR BACALHAU

 

Desvendar e confirmar a verdadeira identidade do senhor João do Grão, que concebeu e deu o nome ao lendário restaurante da Rua dos Correeiros da Baixa pombalina, não serão por certo, favas contadas, muito menos em sede de galegos, os minhotos da vila de cima, contentes por fazer há séculos de Lisboa o seu Brasil.

Mello Lapa, o jornalista que melhor e há mais tempo conhece e frequenta os restaurantes alfacinhas, continua a bater-se pela tese tradicional do galego João, vivaço e hábil em comidas e bebidas, que jogou um às na Travessa da Palha (mais tarde Rua dos Correeiros) aproveitando a vizinhança da Praça da Figueira onde, sobretudo depois do grande terramoto, se instalou na praça farta, abastecedora do coração da capital, onde aparecia a melhor fruta a mais viçosa hortaliça e a mais completa das capoeiras.

Lisboa era, há muito, terra de forasteiros que buscavam ordeiramente cama e mesa conforme a capacidade da sua bolsa e do seu índice de bem estar. Camões tinha andado pelo Mal Cozinhado. Da Ribeira das Naus, barraco comum a outras cidades portuárias da Europa, onde apenas se recebia o dinheiro do pão, vinho e da mão-de-obra de fritar o peixe.

No João do Grão, segundo Mello Lapa, parte do sucesso residirá, por certo, no «mono-cozinhado» do bacalhau, a célebre meia-desfeita, um autêntico milagre do bom sabor e baixo preço que conseguiu resistir a tudo e a todos, alcançando a recém-passada e saudosa década de 60 de tão saudosa e grata memória.

Em abono do que fica dito, se aviva a memória de todos aqueles que em Coimbra tiveram acesso ao Restaurante E AQUI, sito na Rua da Loiça, na zona baixa da cidade, onde era servido um abundante prato de bacalhau com grão pela módica quantia de cinco escudos, acompanhado pelo competente copo de vinho e sem guardanapo que esse custava cinco tostões e dava direiro a lugar de mérito, separado por grade do povo ignaro. Pouco durou este João do Grão dos estudantes e dos futricas da cidade do Mondego em contraste com a congénere da antiga Travessa da Palha, que continua fiel ao bacalhau com grão, atraindo os caixeiros, lojistas e empregados públicos que por ali trabalham, todos somados aos curiosos do João do Grão e aos que se lembram ainda da meia-desfeita a sete e quinhentos, bem diferente do bacalhau cozido com grão e batatas que agora se apresenta à mesa pela módica quantia destes tempos que correm, nem o fiel amigo está para brincadeiras.

 

 

A MEIA-DESFEITA

 

Tudo mudou, da confecção ao preço. Segundo Mello Lapa, à meia-desfeita competia já o bacalhau desfiado a que se juntava o grão, salsa e cebola, tudo temperado com azeite e vinagre, a modos de salada dos nossos dias.

Símbolo de um tempo em que o bacalhau era comida dos pobres mais pobres e a galinha alimento dos ricos ou de doentes, não admira que a velha receita fosse obrigada a modernizar-se, dispensando mão-de-obra, embora mantivesse todos os ingredientes do prato original.

Mas deixemos Mello Lapa falar ao ritmo do bacalhau com grão, deste marco inesquecível de Lisboa boémia e popular.

«Conheci e frequentei ainda durante muitos anos o João do Grão da meia-desfeita, repartido em pequenos gabinetes que um incêndio destruiu por completo, dando origem a esta sala mais antiga, onde agora nos encontramos. A casa nunca fechava, tinha gente de Verão e de Inverno, vinte e quatro horas por dia. Talvez por isso, atraía as tertúlias boémias, artistas e fadistas que aqui se misturavam com a turbamulta que tinha o seu negócio no velho mercado da Praça da Figueira, consumidores habituais de copos de vinho e caldos de grão.

A popularidade da casa, não sei bem porquê, encheu Lisboa. Quando morreu o velho João do Grão, os cegos alfacinhas cantavam, acompanhados ao violão:

 

«Numa noite d´invernia

Fui ao Alto de S. João

Visitar a campa fria

Do antigo João do Grão

 

Acompanhou a romagem

O amigo José Borralho

Comemos meia-desfeita

E voltámos pró trabalho.»

 

«Em 1943, continua a recordar Mello Lapa, Vasco Santana, António Silva e Ribeirinho representavam no Parque Mayer a "Revista João do Grão", que ficou célebre nos anais do nosso teatro ligeiro. De facto, a Lisboa boémia e fadista encontrava naquele ambiente meio rural do João do Grão em que se revia e de que decididamente gostava.»

 

 

RELÍQUIA DE ÂMBITO EUROPEU

 

Cento e muitos anos depois, o velho restaurante parece em vias de se tornar uma relíquia de âmbito europeu, atraindo as atenções de jornalistas e investigadores estrangeiros, tendo mesmo vindo a público, numa revista holandesa, nova história das origens e identidade do João do Grão, que refere a mítica personagem como tendo sido um antigo guarda-civil que se terá fantasiado de mulher num dia de Carnaval, o que valeu a expulsão pura e simples.

Vendo-se sem recursos para se manter a si e aos seus, este João começou por vender bacalhau com grão, vinho e pão, iniciando assim um negócio que vai na sexta geração, responsável, ao que parece, pela fortuna de todos os intervenientes que nele entraram ao longo dos anos.

Apesar, destas modernices, Mello Lapa continua a acreditar que a firma Nunes & Toucedo é, há perto de dois séculos propriedade de famílias galegas oriundas de Riba de Teia, que elegeram Lisboa como local privilegiado de penoso e persistente trabalho.

Quem se recorda das invasões francesas de 1810?

Quem registou, fosse o que fosse da pérfida estada entre nós do general Massena ou do oportunista e pérfido Wellington?

Ninguém, por certo. Tudo se dissipou na voragem do tempo, resistindo até hoje esta humilde instituição onde não há heróis nem medalhas e os actos de bravura passam pelo combate com uma lauta travessa ou uns bons púcaros de carrascão cartaxense que tem, no João do Grão, um santuário de cento e tal anos.

Casa limpa e arejada, serve a comida típica das honradas casas de pasto que pontuavam outrora na Baixa lisboeta onde nascia e morria gente todos os dias. Sem pretensões nem prosápias, o João do Grão está bom e recomenda-se, resistindo a todas as tentações de trespasse ou de mudanças precipitadas, quase sempre de mau agouro e de mau resultado.

 

 

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